segunda-feira, 31 de março de 2014

Humano, demasiado humano


Esses dias reli uma das entrevistas mais interessantes que já vi de uma pessoa no meio do futebol, realizada pelo promissor técnico Fernando Diniz, ex-jogador do Flamengo, Santos, Fluminense e atual treinador do Grêmio Audax. Nela, entre outras coisas, se destaca:

"Eu sofria muito quando era jogador. Não fui um cara que teve felicidade de ser jogador. Era uma coisa que era pra eu adorar, mas esse ambiente profissional de alto nível me trazia muita angústia e sofrimento”.

“O ambiente do futebol profissional trata os jogadores como máquina e ignora seus sentimentos. E não colabora para que eles se desenvolvam politicamente e culturalmente. Ignora esse lado e o que eles pensam”.

"Querem que você seja uma máquina. Ninguém sabe o que você acha, porque acha, porque você sofre, e o que pode ser feito para melhorar sua situação. O futebol não é um meio que favorece a humanização das pessoas. Tem que se mexer em um núcleo social, o jogador não é uma máquina feita para só ganhar e dinheiro".


"Geralmente o jogador, quando é criança, vem de uma família desestruturada. Muitos jogadores saem com 12, 13, 14 anos de condições adversas. Tudo isso faz com que ele não tenha poder de se articular, por exemplo. E o futebol e os clubes não levam isso em consideração. O jogador é tratado como objeto" .

Matéria completa: http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2012/12/07/infeliz-como-jogador-fernando-diniz-cursa-psicologia-e-vira-tecnico-parar-curar-angustia-pessoal.htm


É evidente que por ser um técnico fora da mídia, de um clube que na época estava na segunda divisão de São Paulo, a entrevista pouco reverberou. Daí nota-se a importância de um movimento como o Bom-Senso FC (ver) ser liderado por jogadores “midiáticos”, já que, muito do que Diniz destaca é levantado pelo grupo ou você pode encontrar no livro do “líder”, Paulo André (http://www.pauloandreoficial.com.br/site/livro/). Mas, o foco do assunto não é o Bom-Senso (como grupo) e sim os pontos levantados pelo Diniz.

É interessante ouvir um ex-atleta falar: “Eu sofria muito quando era jogador. Não fui um cara que teve felicidade de ser”. Ao comentar isso, ele destaca algo que muitos outros podem estar passando que é o fato de “não gostar de sua profissão” e por isso, sofrer. No "mundo normal" muitas pessoas passam por alguma profissão ou empresa que não gosta e onde é infeliz, e isso é totalmente "aceitável" e compreensível. Todavia, por ter uma áurea, diria, “romantizada”, o jogador de futebol meio que perde esse direito. Mesmo que 82% dos jogadores no Brasil (ver) recebam no máximo dois salários mínimos, nos acostumamos a achar que a profissão é uma maravilha, que, como diria o clichê: “eles são pagos para se divertir” ou “eles são pagos para correr atrás de uma bola”, deixando de lado questões como: distância da família, péssima condição de moradia (em times pequenos e até grandes), pressão interna do clube, pressão de empresário, etc.

Só para ficar em um exemplo, falando por experiência própria inclusive. É horrível ficar sem receber  na data correta, chegar no fim do mês e não ter o salário. E por mais que você seja profissional é impossível um dado momento não vir na sua cabeça coisas do tipo: “como eu vou pagar aquela conta?”, e isso não afetar seu rendimento. No entanto, quando isso ocorre com jogadores de futebol que muitas vezes ficam 2...3...4 meses sem receber e por isso “não se esforçam”, são tratados como “mercenários” ou pior, “estão lá roubando o dinheiro do clube”, pouco se leva em consideração se eles realmente não estão “se esforçando” ou se há uma barreira, até psicológica diria, para isso. Poucos tentam se colocar no lugar. Apenas cobram "profissionalismo", em um ambiente que muitas vezes não é profissional. 

E aí entramos no segundo trecho da entrevista do Diniz. “O ambiente do futebol profissional trata os jogadores como máquina e ignora seus sentimentos. E não colabora para que eles se desenvolvam politicamente e culturalmente”. Muitos podem falar, “ahh mas o jogador ganha muito”. Como mostrei antes, essa não é a realidade, mas, mesmo se fosse, isso é motivo para que sua vida pessoal seja castrada? Só porque um jogador ganha 500mil, 600mil, etc. ele deixa de ter pai, mãe ou alguém que tenha apresso. Eles deixam de ter problemas de relacionamento? Eles ficam imunes a problemas com álcool, drogas, etc. Dá para dizer que o dinheiro compra “equilibrio psicológico”?.

Pegando alguns exemplos de jogadores que “se perdem” (Adriano talvez seja o maior atualmente), dá para ver que isso ocorre frequentemente. Porém, ao invés de se tentar levar em consideração o lado humano, o que acontece muitas vezes, por parte da mídia e torcedores é a culpabilização da vítima, ou seja, o “milionário jogador” que é “pingunço”, “irreponsável”, “vagabundo”, etc. A culpa é dele e pronto. Como destaca o Fernando Diniz: "Ninguém sabe o que você acha, porque acha, porque você sofre, e o que pode ser feito para melhorar sua situação".

E isso nos leva a última declaração pontuada no texto. "Geralmente o jogador, quando é criança, vem de uma família desestruturada. Muitos jogadores saem com 12, 13, 14 anos de condições adversas. Tudo isso faz com que ele não tenha poder de se articular, por exemplo. E o futebol e os clubes não levam isso em consideração. O jogador é tratado como objeto”. Falando em relação ao Brasil, infelizmente o futebol é a principal via para um moleque pobre de comunidade se tornar “alguém na vida”. Por isso, se você é um negrinho da favela muitas vezes já nasce com a responsabilidade de ter “ginga nos pés”, ou seja, já não basta à vida (meio social) limitar suas escolhas, ele também impõe o que você deve escolher. Porém, como a maioria não acontece (como jogador), se torna mais um "qualquer" no meio de tantos.

No entanto, mesmo o que consegue chegar em um time profissional, pode muito bem não ser feliz. Usando uma frase do autor do título (Nietzsche): “Você vive hoje uma vida que gostaria de viver por toda a eternidade?”. O fato de ser um jogador (algumas vezes famoso) não significa que ele é o que gostaria. Ele apenas escolheu essa profissão porque ela era uma das poucas oportunidades dele ascender socialmente. Mas, lá no início ele muito bem poderia querer ser jornalista, médico, engenheiro, etc. mesmo que ganhando menos. Ou seja, não foi ele que escolheu sua profissão (o que, convenhamos, influi diretamente na sua vida), o meio que “lhe obrigou” (entre aspas), a ser jogador. Eu ganharia muito mais sendo médico, piloto de Fórmula 1 ou ator de filme pornô. Mas, mesmo se conseguisse, essas profissões (entre tantas) não me trariam felicidade ou realização. E mesmo o dinheiro que poderia vir a ganhar não compensaria. E assim é com diversas pessoas. Mas, por que com jogadores deve ser diferente?

É evidente que os jogadores não são uma "classe especial" ou apenas eles sofrem com empregos ruins, etc. Pelo contrário, por mais glamour que ser jogador possa ter, eles são apenas mais alguns "operários", entre tantos, que trabalham "por trabalhar", sem prazer, apenas por "sobrevivência" ou por falta de "algo melhor". E também, é óbvio que o mundo do futebol não é composto integralmente por jogadores “socialmente abalados”, é claro que todos possuem seus erros, muitos são negligentes, irresponsáveis, etc. Porém, a questão é que, assim como qualquer pessoas “normais”, isso acontece porque eles são: humanos, demasiado humanos.